Anti-texto de 02/11/2021
No lugar onde não há sal nem o doce do mel.
Onde não há pólen, nem ventania.
Deve haver risadas, brincadeiras e alegria.
Longe, bem longe desse mundo.
Longe dessa tela como modo de vida inútil.
Longe da lama que nos resta, da terra que nos sufocará. Onde os espíritos sabem que não sabemos de nada, que nossa luta fertilizante é em vão.
A vileza de existir está em achar utilidade pra vida. Em cavar utilidade até o fim da nossa cova e lá se restar deitado, caído, em paz.
A paz está nesse esquecimento de que a vida "cobra". A vida não cobra nada e ainda assim nunca estamos em paz.
A vida é, em si, tudo e tudo o mais nos falta. É mais fácil viver para o bem do outro: alguma justificação mínima serve pra burlar nossa inutilidade.
A vida corre, tanto quanto as palavras de injustiça que não são nada, além de justiça cósmica.
Em feitio com a não-cobrança, a simples passagem que chamamos de tempo, abraça também injustiças. A justiça cósmica não é ordenada, é puro caos. Vindo diretamente da nossa mente massaroca. Que nada pensa, nada cria, tudo transforma ao desfigurar.
(A palavra justiça é o caos linguajar em seu mais perfeito estado!)
Se fosse por uma palavra dO que chamamos deus, diria: - esqueçam-se. De nada vale lembrar.
Aos nossos antepassados, tudo!
À memória deles, tudo!
Sem cobrança, sem apelos.
Viveram e já se esqueceram do amargo e ácido limão, do salgado mar, da ofuscante estrela chamada Sol.
Vagamos. Vagamos, como eles, rumo ao esquecimento.
À memória deles tudo!
À nossa, rumo ao nada, um algo além da cobrança.
Quando aportam em Terra firme, já se esqueceram novamente. Acendem incensos, inventam fogueiras, arrancam flores. Cirurgias, dias letivos, impostos e assinaturas. Antes, a segura linguagem.
Tudo para se esquecerem de novo.
Inventei uma rúbrica aos dez anos. Para que me esquecesse que sou humana e pensasse que sou Lizete, indivíduo e pessoa. Certa vez emiti um cheque sem fundo e fui estudar Filosofia. Tive que ensinar aos meus filhos sobre o medo e fui estudar Direito. Está tudo troca-ligado.
O que não somos, o que não temos, o que não lembramos e o que fingimos nos importar.
Lei, só é bom aqui: Onde não há o esquecimento da discórdia.
Deus só é bom aqui: Onde não há o esquecimento!
Lá, onde nossos antepassados estão, Ele é mais um, de bondade equivalente a dos outros. Mais um a sorrir, a brincar e a esquecer da cobrança que chamam de vida.
Não é sobre a música, não é sobre o sopro do vento sibilando no varal içado, sobre o fungo no toldo do vizinho, ou as fezes de animais voadores que marcam desenhos abstratos nas faixadas dos edifícios. Não é sobre suicídio.
Toda maçaneta demonstra que viver é parar. A tábua como limite do açougueiro e da cebola.
Passamos a vida lutando contra o esquecimento.
Não podemos deixar de fazer o almoço, nem de regar a próxima colheita de verdes.
A energia da pilha do relógio não pode acabar.
Não pode haver bug do próximo milênio.
Não podemos perder a memória das fotos que não revelaríamos, mesmo afirmando que estavam arquivadas para serem reveladas.
Em resumo, não sabemos batalhar com a memória. Ora ela é dádiva, ora é inimiga das horas e amiga das lágrimas.
Não paramos para escutar o vazio do esquecimento. O tédio abissal do vácuo existencial.
A mudez dos nossos antepassados, o grito calado da inocência.
Que nos ensinam a cortar cebola sem dizer uma palavra. Pq não permitimos que sua memória seja esquecida.
- E porque palavras não são necessárias para aqueles que esqueceram de sua função, dada a inutilidade dessa lembrança...
Há algo de fato em que os humanos devem se prender e esse algo é um lugar: o lugar da memória.
‿‿‿Nossos antepassados não estão lá!
Não estão no lugar da memória, definitivamente, mas, antes, do esquecimento.
Onde podem verdadeiramente estar em paz.
Viver é perturbar-se, desviar-se, parar no sinal da mão espalmada, cruzar linha telefônica e digitar nove para falar com o atendente.
É cair no meio de uma reunião online exatamente no espaço reservado à preocupação, ou se atrasar, seja por quer ou não, e fingir para si mesmo que é importante, destinando horas para se mutilar com estes e outros sentimentos cortantes.
Afinal, ninguém está em paz em uma reunião, nem mesmo fora dela.
Quando inventaram os arquivos, lembraram dos museus e dos papiros - futuramente livros e docs. Aí começou o funcionalismo público: não se esqueçam de onde vem o poder da memória!
Muitos sentam na memória e, lá, ficam parados.
Viver, caro leitor aguerrido, é estalactite rugosa. Lajota no sol e madeira com cupim. É genocídio contra povos, possibilidade de um acidente espacial, de um asteroide, ralo entupido com cabelo e boletos, muitos boletos. Falta dágua, falta de luz, só não falte a memória.
E onde falta comida? Onde falta comida e a fome não pode ser esquecida, é lembrança da carne do corpo se corroendo. Lembrança da carne do corpo se corroendo é também chamada de memória?
Se memória for dor de fome, então sim.
Se a dor for algo a mais que a memória, então não.
Como não podemos nos esquecer do outro, antes de nós mesmos, para conseguirmos esquecer do nosso próprio vazio existencial, a dor do outro deve sempre ser evitada.
Este é meu único mandamento não-linguístico-vital:
A dor do outro deve ser evitada.
À dor dos nossos antepassados, um brinde de água e fogo! Um salve ao esquecimento e à paz do esquecimento.
02!11!2024
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